A quarentena está mudando o nosso sentido de tempo. Pelo menos é o que está ocorrendo comigo e acho que a explicação é que os dias são, cada vez, mais iguais a partir do momento que incorporamos novas rotinas a eles. Assim, segundas-feiras são iguais aos domingos, que são iguais às quintas-feiras e por aí vai.
De início, com a necessidade de ficar em isolamento social – nome politicamente correto para quarentena – nossas rotinas mudaram completamente. Cada um de nós teve de se adaptar, seja na convivência diária com quem está conosco em casa, seja nas várias tarefas que fazemos, sejam elas de trabalho ou não.
DIVISÃO E UNIÃO DE TAREFAS
Antes da pandemia o dia era mais fluído. Sim, no meu caso, eu ficava uma boa parte do tempo em casa, pois tenho escritório em casa e é nele que estou exercendo minhas atividades, antes e agora. Mas sempre havia compromissos fora, fossem eles dedicados ao lazer ou ao trabalho. O dia, por isso, era muito mais variado. Havia pelo menos uma divisão espacial do que fazíamos, separando a casa de outras atividades.
Com a pandemia e o recolhimento, o que era separado se união e vieram novas rotinas, não só de trabalho, que se virtualizou muito mais, mas na própria casa. No meu caso específico, passei a participar mais das tarefas diárias, ajudando minha esposa, e percorrendo novos caminhos, como é o caso de fazer pães e me arriscar na cozinha.
MAIS NOVIDADES DE INÍCIO
O fato é que, com o isolamento, tivemos muitas novidades no início dele. Tivemos de mudar de comportamento, nos adaptar, descobrir meios de preencher o tempo, assumir novas tarefas caseiras e aquietar-se para viver vendo a vida passar do lado de fora. Quase tudo era novidade no início, mas com o passar do tempo, deixaram de ser.
Com o passar dos dias cada coisa nova que fiz ou que fizemos foram se incorporando às rotinas diárias. Internalizei, por exemplo, a necessidade de higienizar tudo o que entra em casa, automatizando este processo e tornando-o rotina. É assim também com outros procedimentos, que vão das atividades físicas – antes, feitas fora de casa – ao uso mais intensivo da tecnologia, sobretudo na área de comunicação.
TODO DIA É QUINTA FEIRA
Foram 10, 15, 30, 60, 90 e chegamos a mais de 100 dias. No período, a vida foi se normalizando e acostumanos – alguns mais, outros menos – a ficar em casa, fazer não só as tarefas doméstica, mas realizar o que, antes, chamávamos de trabalho e que, agora, está integrado à rotina em casa. Com isso, como chamei atenção acima, os dias foram ficando mais e mais iguais.
O que eu faço na segunda, com pequenas mudanças, repito na terça. E nos finais de semana, quando a minha rotina – e acredito, da maioria das pessoas – era diferente, agora ela é igual, não comparada ao antes, mas com os dias de quarentena que vão se sucedendo. É, de certa forma, uma repetição ao estilo da música de Chico Buarque: “Todo dia ele faz tudo sempre igual”.
UM DIA A CADA SEMANA
Se formos olhar pelo lado da distopia – e de certa forma estamos vivendo em uma delas – poderíamos lembrar o romance Tempo Suspenso, de Philip J. Pharmer. Nele, cada indivíduo vive um só dia na semana. Há os que vivem na segunda e os que vivem aos domingos, mas somente o personagem vive todos os dias, desafiando as regras.
O que estamos fazendo – eu e os que estão respeitando a quarentena – é viver todos os dias, mas como se fosse o mesmo. Assim, poderia ser quinta-feira. O resultado é que todos os dias se transformaram em quinta-feira, seja a segunda, sábado ou domingo. A incorporação das novas rotinas tirou deles a diversidade que tínhamos antes.
A questão é saber se com o final do isolamento eles vão mudar.