A VIDA QUE IMITA A FICÇÃO

Há algum tempo vi um filme que a história mostrava o encontro do pai com a filha, que era garota de programas. Não me lembro do título, mas a produção é de um tempo em que o termo “prostituição” ganhou uma denominação mais politicamente correta e apareceram, então, as garotas de programa. Com nome diferente, elas fazem exatamente o que vem sendo feito ao longo de séculos e séculos: vendem o corpo, o escopo do que alguns chamam de a mais velha profissão do mundo.

A história do filme, uma criação ficcional, me voltou à  mente da partir da leitura dos jornais e ao ver a notícia de um pai que, requisitando os serviços de uma garota de programa, acabou descobrindo que seria atendido pela própria filha. A vida, neste caso e de modo grotesco, imitou a ficção, antepondo o falso moralismo, de um lado, com o escamoteamento da verdade, do outro. O choque, que ocorreu no filme e na vida real, nos mostra como a sociedade se faz de cega para problemas que estão estampados à  sua frente.

O que ocorre no mundo de quem vende o corpo é que só há oferta por haver demanda. Se existem – e existem – pessoas de ambos os sexos que estão dispostas a pagar pelo acompanhamento, também existem aquelas que fazem disso o seu meio de vida, mas camuflam a atividade, escondendo-as das famílias, dos amigos, de namorados, vivendo uma vida dupla, que tem uma aparência normal, mas que possui um lado escuro, secreto.

Não sou daqueles que condena quem vende o corpo. Acho que esta é uma opção pessoal e se a pessoa pode viver bem com ela, que o faça. O que acho estranho é a hipocrisia existente, que separa duas coisas que são iguais. As garotas e garotos de programa não são vistos como prostitutos. Esta designação é reservada para quem está nas ruas, também oferecendo o corpo, mas exposto aos olhares da sociedade, que se ressente da exposição e condena o que estão fazendo, que é, embora com apresentação diferente, a mesma coisa que garotas e garotos de programa fazem.

A hipocrisia se estende, também, a quem usa este tipo de serviço – se é que podemos chamá-lo assim. Como imaginar que jovens saudáveis, educadas e pertencendo a classe média vendem o seu corpo e não presumir que alguém, do seu lado, pode estar fazendo o mesmo? Ah, sim. Isso é para os outros. Integrantes de nossas famílias, nossos amigos e pessoas com quem nos relacionamos de forma mais próxima, não fazem isso. Mentimos para nós mesmos, elevando o grau de hipocrisia.

É o desvendar dessa hipocrisia, como o caimento de um véu, que o filme e a realidade nos mostram. Nos dois casos somos confrontados com o fato de que alguém muito próximo, uma filha ou filho, podem pertencer a um mundo secreto, a quem muitos recorrem, pagando por sexo. É o fingimento e a hipocrisia, e não a venda do corpo, em si, que leva à  tragédia, ao choque, ao desespero.

à‰ compreensível a reação de um pai ao descobrir que sua filha é garota de programa. O que não é compreensível, nem justificável, é que use este serviço, feito por filhos e filhas dos outros, achando que seus familiares, amigos e camaradas estão muito longe deste mundo que há muito deixou de ser secreto. Na hora em que a vida imita a ficção, a realidade se sobrepõe à hipocrisia.

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